O nome. Muitas pessoas costumam começar uma história com o nome de seus personagens. Afinal, muitos já nascem com um nome. Outros o recebem na hora. O que quero dizer é que todos têm um nome, assim como todos morrem um dia. Na ordem cronológica dos fatos, recebemos o nome e depois morremos. Mas eu nunca disse que essa história seguiriam essa ordem. Na verdade, é justamente o contrario: ela começa com a morte e termina com um nome.
Para qualquer um que estivesse prestes a pegar o ônibus no ponto da rua Josteein, seria possível escutar o barulho perturbante das sirenes e até mesmo ver as luzes vermelho e azul oscilando distantes. No entanto, ninguém estava lá. Exceto pelo vulto encapuzado, sentando no banco desgastado de madeira. Ele ou ela encarava as mãos que brilhavam, carregando um objeto de alguns centímetros de diâmetro. Guardou-o na mochila, jogando-a em seguida nas costas. Então correu. E corria tão rápido, como se fugisse de alguma coisa. E fugia. Ele morrera e ela finalmente fugia.
Começou logo depois que sua mãe morrera. A doença acabou com ela, sem dar chances de qualquer reação. Câncer. O funeral foi acompanhado por uma tarde chuvosa. Ela carregava uma pequena flor nas mãos, uma margarida. Sua mãe sempre gostara de margaridas.
Assim que o caixão foi fechado e enterrado, seu pai levou-a para casa. Desde que acordara, a menina não escutara a voz do pai. Ela estava com 11 anos, naquela época. Logo que chegaram na casa, um pouco afastada do centro da cidade, ela foi para o quarto dormir. Nunca conseguia fazê-lo durante a tarde: uma linha de trem passava muito perto de sua casa e o barulho a impedia de pegar no sono. Mas naquela, conseguira. Até seu pai acordá-la.
Murmurando de sono, sentou-se na cama. Seu pai não a encarava diretamente. Primeiro, pegou em suas mãos. Apertava-as de um jeito estranho, nunca havia feito aquilo antes. Então ele fez o pedido.
- Tire a roupa.
Quando ele saiu, depois de quase uma hora, a menina sentia-se mergulhada num poço de lágrimas. Chorou durante e chorou depois. A partir daquele dia, aquela situação passou a fazer parte da rotina. Ia para a escola, voltava. Numa primeira impressão, era uma menina normal. Não era. E ninguém o acharia também, se soubessem. Mas ela nunca contou. Continuava sendo acordada no meio da noite.
Completara 19 anos e, mais do que nunca, sofria. Não mais ia para a escola, ficando em casa todo tempo. Seu pai bebia enquanto ela limpava a casa. Depois, acontecia. Ele nem precisava mais pedir. Era só escutar os passos pesados na escada e vê-lo se segurando na porta do quarto. Era só para isso que falava com ela.
Numa noite, eles escutaram um barulho alto vindo do quintal. Quando ela saiu da casa, seu pai carregava um arma e apontava-a para algum ponto no meio do mato. Atirou no ponto, não acertando nada. Voltaram para dentro e ela, para o quarto. Mas antes, esperou na escada, assistindo-o guardar a arma. Dentro de um saco de pano, escondida entre as cordas do piano que era de sua mãe. Sua mãe! Ah, se ela continuasse viva...Gostava de imaginar como seria sua vida.
Na noite seguinte, chovia muito forte. Dormira pensando em sua mãe e acabou sonhando com ela. Dizia para fugir dali. E que corresse, que corresse muito. No meio da madrugada, decidiu preparar uma mochila. Então fugiria! Ao passar pela sala, deu uma última olhada nos móveis, nos retratos. Viu-se sentada ao piano, no colo de sua mãe, enquanto esta lhe ensinava algumas cantigas simples. Lembrou-se da arma. Hesitou durante um bom tempo, decidindo-se em pegá-la. O fez com o maior cuidado e silêncio, guardando-a no bolso da calça. Correu.
Pela primeira vez, sentia-se livre. A roupa, molhada e pesada, não a incomodava. Parou de correr quando chegou a linha do trem. Decidiu seguir a linha, andando ao seu lado. Não havia se passado nem uma hora quando ouviu gritos. Era ele, correndo em sua direção.
- Onde vai? – gritou, finalmente aproximando-se. Ela queria sair correndo, queria mover-se, mas os pés estavam fixos na terra.
- Para longe de você! – gritou de volta, sentindo coragem e vontade de enfrentá-lo. Ele ameaçou aproximar-se mais e ela, por impulso, apontou-lhe a arma que estava no bolso.
- O que está fazendo? Eu sou seu pai!
- Você não é nada meu! – as lágrimas escorriam pelo seu rosto, misturando-se com a água da chuva.
- Me dá essa arma! – gritou ele, aproximando-se mais rápido. Seus braços oscilavam, cansados. Chegou a pensar que a arma cairia. Mas quanto mais ele se aproximava, mais ela se forçava a mantê-la apontada em sua direção. – Não sei porque você está assim! Não foi tão ruim...
Um tiro e um corpo caído. De tão perto que estava dos trilhos, acabou tombando sobre eles. Mais dois tiros foram disparados. Ela tremia, gemia. No desespero, começou a correr. Parou num ponto de ônibus, distante. Sabia que cedo ou tarde a policia chegaria. Os vizinhos escutaram os tiros. Sentou-se no banco de madeira, encarando as mãos e o objeto brilhante. Era Janie e ela tinha uma arma.
Baseado na música de mesmo título do Aerosmith